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quinta-feira, 2 de julho de 2015

03 - Ouro na Índia - Sociedade/Economia

No fim do século 19, os britânicos farejaram algo de estranho no perfil da população da Índia, então sob seu domínio. Eles notaram que a proporção de mulheres para homens no país estava caindo, sem motivo aparente. Procuraram a explicação em doenças, nos dados de mortalidade, em um fenômeno mundial. Nada. Demorou até que eles entendessem o que vinha acontecendo. A população estava assassinando suas meninas.
Para os indianos, aquilo não era um absurdo. O nascimento de um filho homem era - e ainda é - um dos acontecimentos mais importantes para uma família do país. Um menino representa a continuidade da linhagem do clã e a garantia de sustento para os pais no futuro. Tudo o que uma menina não pode dar. Quando adulta, uma indiana se casa e deixa a família de origem. Sua identidade e seus bens ficam atrelados ao novo clã. E, além de tudo, seus pais têm de economizar dinheiro para dar o dote - uma série de presentes - à família do noivo. Diante disso tudo, muitas famílias simplesmente concluíram que não valia a pena investir na criação de uma menina pra que outra família colhesse os lucros. Era como rasgar dinheiro.
Os assassinatos são o retrato de como a vida de homens e mulheres é diferente na Índia. Esse é, definitivamente, um país masculino. Ver mulheres nas ruas, especialmente à noite, pode ser coisa rara em muitas cidades e vilas do país. Elas geralmente ficam em casa, com a missão de cuidar das tarefas domésticas. Uma minoria - 48% - sabe ler (e olhe lá, porque muitas só aprendem a assinar o nome). Entre os homens, 73% são alfabetizados. Até dentro da casa de que a mulher cuida o homem tem mais importância. No sul do país, as esposas esperam o marido terminar uma refeição para começar a comer.
A preponderância masculina é fácil de entender pelos números da população. Em 1991, existiam 945 mulheres para cada 100 homens no país. Em 2001, eram 927. Sim, os infanticídios continuam acontecendo. E em maior escala. Primeiro, porque o ultrassom ficou mais popular e permitiu que as famílias conhecessem o sexo dos bebês antes do nascimento. Foi assim que o aborto tomou o lugar do assassinato. Segundo, porque dote virou coisa de luxo. O crescimento do país despertou a ganância dos indianos - e das famílias de noivos, que escolhem o dote que vão ganhar dos parentes da noiva. Antes, eram presentes como ouro e tecidos. Agora tem de tudo. Geladeira? Bota na conta do pai da garota. Um carro novo? É só acrescentar à lista. Tem gente que pede até green card americano. E ai de quem não pagar. Em vilas, o assassinato da noiva de família caloteira não é uma punição rara.
Grávida nenhuma na Índia pode pedir hoje ao médico que diga o sexo do seu bebê. Para evitar os infaticídios, ficou proibido por lei - mais uma que não pegou. Os abortos chegam hoje a 1 milhão por ano. O desequilíbrio na proporção de homens e mulheres faz com que noivos sejam obrigados a viajar para encontrar noivas em outras cidades e estados. Os que têm dinheiro compram uma esposa, por um preço menor que o de um búfalo. Os que não têm, às vezes sequestram e levam pra casa. Quem não tem dinheiro ou vocação para o crime divide uma única esposa com os irmãos. A garota compartilhada ganha quase o status de prostituta.
O dote está disseminado por todas as castas e religiões da Índia. Mas algumas mulheres estão deixando essa prática pra trás. São aquelas que têm carreira e independência financeira. Elas não são a regra. Só 1 em cada 4 indianas trabalha. Nas vilas, elas dividem o emprego no campo com tarefas da casa, como caminhar quilômetros para buscar água potável para a família. Nas cidades, a porcentagem de mulheres empregadas é menor, porque mantê-las reclusas em casa é questão de moral e status para as famílias. As que trabalham estão aproveitando a onda de crescimento do país. Principalmente no setor de tecnologia, onde as mulheres já são 20% dos funcionários. Estamos falando de empregos como atendente de call-center e engenheiro de software, que têm garantido a uma molecada de 20 e poucos anos um salário maior do que o que os próprios pais ganham. Eles (e elas) pegaram carona no interesse de países como os EUA em serviços baratos de tecnologia - que está ajudando funcionários e empresários indianos a prosperar. Tanto que a população de milionários da Índia é hoje a que mais cresce no mundo.
Para as mulheres que fazem parte desse grupo, diversão não é só reunir amigas em casa ou sair para compras. Elas querem ir para a balada. Mas só 42% das indianas se consideram capaz de escolher que tipo de diversão devem ter à noite, segundo uma pesquisa com 1 004 mulheres de 8 estados, feita recentemente pelo jornal Times of India. O resto acha que maridos, pais ou grupos que se denominam polícia moral devem decidir por elas. Basta visitar os bares da Índia para comprovar. Poucas circulam neles, mesmo quando acompanhadas por um homem. "Se levo uma menina a um bar, às vezes o garçom me pede para sair, porque o ambiente pode ser perigoso para mulheres", diz Siddharta Hajra, estudante de 27 anos que mora em Calcutá. E bota perigoso nisso. Em janeiro, conservadores hindus espancaram mulheres em um pub de Mangalore, uma cidade universitária. Eles alegaram que mulheres não deveriam dançar em um bar, muito menos beber (o álcool é visto por hindus como um estimulante excessivo para o corpo).
A mudança mais radical de comportamento para as indianas, no entanto, acontece por tradição - entre as hindus. Quando o marido morre, uma hindu deve fazer votos de castidade, que incluem raspar a cabeça e usar vestes brancas. Muitas partem para cidades sagradas para o hinduísmo, principalmente Vrindavan, perto de Délhi. Apelidada de Cidade das Viúvas, lá as mulheres moram em viuvários. Nem todas buscam alento espiritual nas comunidades. Algumas são expulsas pela família por não terem como contribuir com as despesas. Outras saem porque se sentem desprotegidas sem o marido. Foi assim com Prem Verna. Ela saiu de Délhi e chegou a Vrindavan em 2008, escondida do filho, que ficou violento após a morte do pai. Hoje ela vive com 120 mulheres em um viuvário liberal, que tenta estimular a comunidade a dar menos importância aos votos de castidade impostos às viúvas. É um movimento que já está se consolidando nas cidades. Nelas, muitas viúvas apenas se desfazem dos adornos que indicam que uma indiana é casada, como braceletes e um bindi - aquele ponto na testa - de cor vermelha.

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