Os indianos já foram tão liberais que indicavam sexo para salvar a alma. Hoje, até um casal de mãos dadas os faz corar
Que romance, que nada. O último dia dos namorados da Índia, 14 de fevereiro, teve muita ação. Um grupo de conservadores hindus saiu às ruas do país à caça de casais que estivessem de abraços ou cheirinhos no cangote. Queriam obrigar os pombinhos a casar na hora. A polícia entrou em ação, e o balanço do dia contou várias prisões e uma leva de cartões comemorativos fofinhos queimados pelos militantes. Ao que se sabe, o grupo não conseguiu levar ninguém ao padre (ou melhor, sacerdote). Mas se vingou cortando os cabelos de todos os apaixonados que viu pela frente.
Ainda que a polícia ficasse quieta, esse pessoal não teria muitos alvos. Toda demonstração pública de afeto é tabu na Índia. Quase toda: homens andam de mãos dadas numa boa (e isso é um costume entre amigos, nada mais). Entre homens e mulheres, nem os casados ficam de chamego na rua. O engraçado é que esse recato todo seria impensável há algum tempo. Conhece o Kama Sutra? Foi a Índia que fez. O sexo tântrico? Foi a Índia que fez. A Bruna Surfistinha? Não, essa é coisa nossa mesmo...Vamos dar uma paradinha no passado para entender como é que a Índia ficou tão pudica.
Lá pelos séculos 6, 5 e 4 a.C., o sexo não era assim vergonhoso. Reis o usavam em rituais públicos, como o Ashvamedha. Funcionava deste jeito: quando um rei queria ter um filho viril, botava um cavalo pra correr nas vizinhanças. Se o cavalo voltasse depois de passar por terrenos inimigos, é porque era um legítimo garanhão. O bicho havia passado no teste, mas acabava sacrificado. Entrava em cena a rainha: ela deveria manter relações sexuais com o cavalo morto para recolher a "semente" da virilidade, como o pessoal pensava que aconteceria. Misturada à semente do rei, a herança do cavalo daria à rainha um príncipe de grande destino à frente.
Mas os ensinamentos de Buda começaram a se espalhar nessa época, e ele dizia que tudo o que liga uma pessoa ao corpo gera sofrimento. Até sexo - que virou algo constrangedor. A mentalidade só mudou 8 séculos depois. Era o chamado Período Dourado da Índia, graças à fertilidade de inovações em campos como astronomia e matemática (a criação do xadrex e do número zero é atribuída a esses anos). Criativos, os indianos mudaram sua visão sobre relacionamentos. "Eles se perguntaram por que o sexo deveria ser uma mera ferramenta de procriação", diz Rita Banerji, antropóloga e autora do livro Sex and Power. "Defendiam que as pessoas tivessem prazer." Surgiu o Kama Sutra, uma espécie de guia para atrair o parceiro e aguçar os sentidos durante o sexo. Dizia, por exemplo, que os homens deveriam criar um clima com música antes de partir para o ataque. Mais tarde, viria o sexo tântrico. Era uma filosofia, criada por estudiosos que tentavam encontrar caminhos para a moksha, o conceito hindu de libertação do ciclo de nascimento e morte. Apostavam que a resposta estava na união de corpo e alma. E que o sexo poderia ser uma ferramenta, se seguisse alguns princípios. Homens eram instruídos a beber os fluidos sexuais ou menstruais de mulheres, por exemplo. Sacerdotes do tantra viraram conselheiros de reis e influenciaram todas as religiões da Índia. Mas os ritos libidinosos eram só pra quem passava por um longo treinamento.
Ou seja, não dá pra dizer que a Índia era um bacanal. Mas era isso o que os estrangeiros que chegavam por lá pensavam. Tanto muçulmanos, que dominaram a região da Índia entre os séculos 16 e 18, quanto os britânicos, que assumiram o comando depois, ficaram horrorizados com as vestes dos indianos. Ou a falta delas. Antes de os muçulmanos tomarem o poder, indianos e indianas andavam por aí sem camisa. Chocados, os novos líderes usaram contra a nudez o mais eficiente dos métodos: cobrar impostos. "As indianas começaram a se cobrir e usar véu por causa da vigilância", diz Rita. Os britânicos também desaprovavam a sensualidade das indianas, e tiveram uma ajudinha de Ghandi para moralizar o país - ele afirmava que o sexo distorcia o espírito.
É por isso que hoje pega mal fazer qualquer menção a romance ou sexo. Atração e desejo são conceitos impronunciáveis em uma sociedade em que nem mesmo os casamentos são por amor. Na Índia, a regra é casar-se com alguém escolhido pelos pais. O caso de Sunil Kumar mostra isso. Guia de turismo da cidade de Jaipur, Sunil tem 30 anos, o que na Índia significa que ele já está quase pra titio. Há um ano seus pais procuram uma noiva para ele. Têm15 finalistas. E Sunil só vai conhecer a mulher de sua vida no dia do casamento. "Dá medo", diz. A tradição moralista, no entanto, não impede que o sexo esteja nas ruas como em qualquer outro lugar do mundo. Há 10 milhões de prostitutas na Índia. A diferença é que elas usam saris, sem mostrar carne para atrair clientes.
O lado mais cruel é que a repressão exclui da sociedade quem não entra no script. A lei do país prevê prisão de 10 anos ou perpétua para homossexuais. Condenações são raras. Na prática, a lei é usada para chantagear e extorquir. Muitos homossexuais buscam abrigo numa casta marginalizada chamada hrijas, formada por travestis, hermafroditas e eunucos (meninos que teriam sido vítimas de castrações). Na história da ascensão e queda do sexo, esse é um capítulo ainda a ser resolvido pela Índia.
Para saber mais
- Sex and Power - Rita Banerji, Penguin, 2009.
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