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quarta-feira, 1 de julho de 2015
02 - Ouro na Índia - Sociedade/Economia
Já na largada, as regras não são as mesmas pra todo mundo. Nós explicamos. Mal sai da barriga da mãe, um bebê indiano ganha um rótulo. Entra em uma das 4 castas de uma hierarquia social ditada pelo hinduísmo, que pela ordem tem os sacerdotes, ou brâmanes, depois reis e guerreiros (xátrias), mercadores e produtores (vaixás) e servos (sudras). É um esquema que divide o trabalho entre a sociedade e garante que sempre haja um grupo cuidando da religião, da organização política, do comércio e dos serviços. Faz tempo que isso funciona assim - praticamente desde 1500 a.C., quando o princípio dessa classificação apareceu nos Vedas, uma série de livros sagrados para o hinduísmo. Os hindus acreditam em reencarnação, e acham que o ciclo de nascimento e morte serve para compensar nossas ações: nesta vida se faz, na próxima se paga. Para libertar a alma desse vai e volta ao corpo, é preciso cumprir deveres que beneficiem toda a comunidade. Que deveres? Exatamente aqueles que se ganha na hora do nascimento.
Só que nem todo mundo se encaixa em alguma dessas castas. Os excluídos da hierarquia são os "intocáveis", conhecidos como dalits. Não podia ter sobrado destino pior pra eles: ficaram com as tarefas consideradas impuras, que ninguém mais faz, como limpar excrementos. Dalits são considerados tão sujos, mas tão sujos, que ninguém de outras castas deve tocá-los (daí o apelido carinhoso). Não muito tempo atrás, até a sombra deles fazia qualquer brâmane sair correndo para não se contaminar.
Não pense que foram os deuses hindus que jogaram os dalits na lama. Foi obra do homem mesmo. As castas dos Vedas são reflexo de uma segregação criada por tribos de arianos (não, nada a ver com Hitler), que invadiram a Índia na época em que os livros foram escritos. Vindos do Afeganistão e da Ásia Central, eles dominaram a região. E usaram classes sociais para se diferenciar da população nativa, que viam como inferiores. Alguns historiadores dizem que o critério de separação foi raça - os recém-chegados eram branquelos, os de casa eram morenos, negros ou aborígenes. Outros falam que o critério foi idioma, já que os nativos não se expressavam bem na língua dos novos líderes. Em um ponto, todos concordam: os arianos se colocaram no topo da hierarquia, criada por eles mesmos, e jogaram os indianos para o fim da fila. A divisão por funções aconteceria pouco depois.
Não havia e não há escapatória: como a casta está ligada ao nascimento, subir ou descer um degrau na hierarquia é impossível. Na prática, pelo menos, porque a teoria é outra: na década de 1950, a Índia declarou todos iguais perante a lei, e proibiu o termo "intocáveis". Mas lei é igual na Índia e no Brasil: tem as que pegam, tem as que não pegam. A das castas não pegou. Quase 60 anos depois, o sistema está vivo. Tanto que muito católico e muçulmano adotou a ciranda das castas.
Governo, indianos e turistas sabem que a discriminação das castas baixas segue firme e forte, principalmente nas 680 mil vilas da Índia. Em algumas delas, dalits não podem coletar água do mesmo poço usado pelas castas altas. Não podem frequentar a mesma escola. Não podem entrar nos templos. Não podem cozinhar para os outros. Não são atendidos por médicos em hospitais. São rejeitados por barbeiros. São os únicos a ocupar os cargos de faxina, e não conseguem outros empregos além desses. Recebem no chão a comida que compram. Por quê? "Porque se eu der a mão a um dalit, as pessoas da minha comunidade vão achar que vou me contaminar", diz Sunil Kumar, um guia de turismo de Jaipur, no estado do Rajastão, da casta vaixás. "Prefiro me manter longe."
Mas o que a lei não resolveu a globalização está remediando. O país enriqueceu muito nos últimos tempos. Entre as décadas de 1950 e 1980, a economia avançou, em média, uns 3% ao ano. Depois dos anos 90, tem crescido 6%. É um desenvolvimento movido pela chegada de empresas, que tem aumentado a população das cidades - o que cria um esconderijo perfeito para dalits. Nas vilas todo mundo conhece os segredos de todos, mas na cidade qualquer um pode inventar história.
Mintu Ram foi um dos que trocaram a vila pela cidade. Escolheu Calcutá, a 2ª cidade mais populosa da Índia, com quase 15 milhões de habitantes. "Queria um emprego em uma fábrica", diz. Só de olhar para Mintu, ninguém podia adivinhar sua casta. Mas o histórico o denunciava. Como a maioria dos dalits, Mintu não teve uma boa educação. Acabou em um emprego que ninguém quer: a fabricação de couro. A pele de animais mortos é tida como impura pelos hindus, e castas altas fogem de couro como Diabo da cruz. Por isso 95% dos colegas de Mintu são dalits. Os chefes da fábrica, que só gerenciam a operação, são brâmanes.
Poderia ser pior. Bem pior. Dalits são contratados para os empregos mais nojentos do planeta. Estamos falando de serviços como o de limpadores de bueiros, que mergulham nas tubulações de esgoto à procura de fezes, bichos e dejetos causadores de entupimentos. Ou de faxineiros de fossas, que carregam na cabeça os excrementos que retiram das latrinas. Com trabalhos como esses, os dalits que fugiram das vilas viram, de novo, intocáveis.
Dá até pra ver a segregação entre castas nas cidades. Em Mumbai, a mais rica da Índia, há bairros diferentes para castas diferentes, numa divisão informal. Nas comunidades de maioria brâmane, prédios residenciais. Na de dalits, casebres ou barracos. Dalits também são a maioria nas mais de 2 mil favelas de Mumbai, onde vivem 55% da população da cidade. A vida nessas favelas é precária: 71% dos moradores usam banheiros comunitários - cada um compartilhado por até 1 500 pessoas - e quem não tem emprego se vira com serviços como reciclagem de lixo.
Mas tem jeito de sair dessa sina. Pouco depois da independência do país, entrou em vigor um programa que reserva vagas em universidades, cargos políticos e órgãos governamentais para castas baixas. Uma geração próspera de dalits já se formou com a iniciativa. Em 1950, eles eram 0,7% dos funcionários públicos - hoje são 13%. É um número representativo se considerarmos que os dalits são 15% da população. Já teve até presidente dalit: Kocheril Narayanan, que ficou no cargo entre 1997 e 2002 e foi eleito por um colégio de parlamentares. Hoje, uma dalit está na fila pelo cargo mais importante do governo, o de primeiro-ministro. Mayawati Kumari é ministra-chefe (o equivalente a governadora) de Uttar Pradesh, um estado tão populoso quanto o Brasil inteiro. Conhecida como Rainha dos Dalits, ela era uma das cotadas ao principal posto do país nas eleições parlamentares que terminaram em maio, após o fechamento desta edição.
Se dar bem não significa se livrar do estigma. "Quem tem dinheiro às vezes precisa subornar alguém para chegar a postos altos", diz Vasundhara Shende, dalit que gerencia uma organização para ajudar membros de castas baixas. Outros trocam o sobrenome, que pode entregar o clã de origem. (Os Banerjis são brâmanes, os Doms são dalits, por exemplo.) Essa é uma tática comum entre executivos e empresários de castas baixas que precisam pegar empréstimos em bancos e conseguir sócios. A precaução extra vale o esforço. Mudar uma estrutura social milenar pode ter um preço. Em 2008, um rapaz dalit foi atacado com pedras por vizinhos de casta mais alta enquanto ia para o seu casamento, no estado de Haryana. Ele seguia montado em um cavalo, um luxo para dalits. Os vizinhos acharam que ele não tinha esse direito e deveria ser espancado. Fim de festa para os dalits - e um lembrete de que o sistema de castas ainda tem muitos defensores.
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